Dinheiro não compra educação de qualidade

Revista Veja – 27/09/2008

É comum ouvirmos professores praguejando contra o neoliberalismo e a
onipresença do dinheiro nos assuntos humanos. Falam sobre a
importância de uma educação para a formação de valores, de cidadãos
críticos etc. Só há uma notável exceção, que é quando o dinheiro em
questão é aquele investido em educação e no pagamento dos próprios
professores. Nesse caso, e apenas nesse caso, até os líderes dos
sindicatos stalinistas defendem que a principal ferramenta para uma
educação de melhor qualidade é o dinheiro. E o principal uso desse
dinheiro deveria ser o aumento do salário dos professores. Se
ganhassem mais, os atuais professores seriam mais motivados, o que
faria com que a qualidade da educação melhorasse.

"Pesquisas indicam que a maioria dos professores está satisfeita em
sua carreira e não pensa em abandoná-la. Quando o assunto é dinheiro,
porém, eles se apresentam como desmotivados e descontentes, e apontam
o vil metal como a única saída para o aprendizado dos alunos"

Argumento curioso, já que os professores são os primeiros a enfatizar
a incrível dedicação, beirando o heroísmo, que adotam em seu
dia-a-dia. Pesquisas indicam que a maioria dos professores está
satisfeita em sua carreira e não pensa em abandoná-la. Quando o
assunto é dinheiro, porém, eles se apresentam como desmotivados e
descontentes, e apontam o vil metal como a única saída para o
aprendizado dos alunos. A despeito dessa inconsistência, o argumento
dos professores foi comprado pela sociedade. Em parte porque a
proposição é perfeitamente lógica – melhor pagamento está normalmente
associado a melhor qualidade de serviço – e em parte porque as
lideranças da categoria vêm martelando o mesmo discurso há mais de
vinte anos, praticamente sem opositores.

Esse discurso contaminou a sociedade e, por fim, as políticas para o
setor. No começo da gestão FHC, criou-se o Fundef, que destinava 60%
dos seus recursos a aumentar salários de professores. Depois de sua
implementação, a qualidade da educação brasileira caiu. O governo Lula
criou o Fundeb, mantendo a mesma destinação aos professores. A
qualidade da educação continuou a cair. Se algum médico prescrevesse
um remédio e, logo depois, a situação da saúde do paciente piorasse,
este provavelmente rejeitaria o aumento da dosagem do mesmo remédio.
Quando o assunto é a nossa educação, porém, o recado da realidade é
constantemente ignorado em favor da teoria. Assim foi que, no começo
do mês de julho, o Congresso decidiu injetar mais dinheiro na educação
e mais salário aos professores. O Senado aprovou o fim da DRU para a
área da educação, o que deve aumentar em 7 bilhões de reais ao ano o
orçamento do MEC. No mesmo dia, aprovou também um piso salarial
nacional de 950 reais para todos os funcionários da educação. Nota-se
que os parlamentares tomaram essa medida pensando unicamente no
aprendizado de nossos alunos: a mesma lei garante que o benefício seja
estendido a funcionários aposentados e determina que o professor só
pode passar dois terços de sua jornada em sala de aula.

Com exceção dessa parte dos aposentados e da diminuição do tempo de
aula, o projeto tem lógica. Assim como era muito lógica a idéia de
que, se as doenças se espalham pelo sangue, um bom tratamento à base
de sanguessugas só pode melhorar a saúde. Assim como era lógica,
óbvia!, a idéia de que a Terra é fixa e os astros a orbitam. Ou que um
computador jamais conseguiria bater um bom enxadrista. Todas essas
lógicas encontram apenas um pequeno obstáculo: não são verdade. A
realidade encarregou-se de comprovar seu erro.

A questão do financiamento da educação não é uma área para opiniões,
mas para medições. Não é preciso conjeturar sobre o impacto dos
salários sobre a qualidade do ensino – basta medi-lo. E há pencas de
estudos empíricos que fazem exatamente isso: verificam o desempenho de
centenas de milhares de alunos em testes padronizados, computam os
salários de seus professores e o volume de investimentos de suas
escolas, adicionam outras variáveis de interesse – nível de educação e
financeiro dos pais dos alunos, experiência do professor,
infra-estrutura da escola etc. –, jogam tudo em uma ferramenta de
análise estatística e medem a importância de cada variável para o
aprendizado do aluno. A maioria aponta não haver relação significativa
entre salários de professores e desempenho dos alunos, nem entre
volume de gastos por aluno e o seu aprendizado.

"Simplesmente não acredito que dando mais dinheiro aos professores e
diretores que estão em nossas escolas hoje, sem exigir nenhuma
contrapartida ou melhorar sua capacitação, nós teremos um ensino de
melhor qualidade. O problema principal dos funcionários de nossas
escolas não é de motivação: é de preparo"

Alguns dizem que o Brasil investe pouco em educação, como se essa
fosse a razão de todos os nossos males. Não é verdade: nosso setor
público investe entre 4% e 5% do PIB em educação, valor parecido com o
investido pelos países ricos. O gasto é malfeito – vai muito para as
universidades e muito pouco para o ensino básico –, mas não é pequeno.
Outros argumentam que não podemos nos comparar com o que esses países
fazem hoje. Precisaríamos gastar entre 7% e 8% do PIB para chegar
aonde eles estão, pois é isso que os países gastam quando dão seus
saltos educacionais. Desculpem a sem-cerimônia: é mentira. No período
1970-90, a Coréia do Sul gastou em média 3,5% do PIB em educação. A
Irlanda, 5,6%. China, 2,3%. Hong Kong, 2,8%. Inglaterra, 4,9%. Até a
Finlândia, com seu estado de bem-estar social, ficou em 5,7%. Para não
ser injusto, é forçoso reconhecer que, nesse período, houve sim um
grupo de países que gastou mais de 7% (os dados são da Unesco e estão
disponíveis no fim desta coluna). São eles: Quênia, Namíbia,
Seychelles, Barbados, Martinica, Suriname, Armênia, Azerbaijão,
Jordânia, Mongólia (a campeã, com 12,9% – não é piada), Tadjiquistão,
Uzbequistão, Noruega e Suécia. é desnecessário comentar.

Quero deixar claro que não acredito que o aumento de recursos para a
nossa educação ou o aumento de salário dos professores vai causar um
mal. Acredito inclusive que em alguns casos ele poderá fazer bem – se
o MEC investir os seus recursos adicionais para melhorar a
infra-estrutura de escolas que estão caindo aos pedaços e dotá-las de
bibliotecas e laboratórios, por exemplo, há ampla evidência de que a
repercussão sobre o desempenho dos alunos será positiva. Simplesmente
não acredito que dando mais dinheiro aos professores e diretores que
estão em nossas escolas hoje, sem exigir nenhuma contrapartida ou
melhorar sua capacitação, nós teremos um ensino de melhor qualidade. O
problema principal dos funcionários de nossas escolas não é de
motivação: é de preparo. E falta de preparo não se resolve com
salário, mas com mais e melhor treinamento. Alguns defendem a idéia de
que um aumento de salário atrairia novas e melhores pessoas ao
magistério. Que não adianta aumentar o salário dos professores em 20%
ou 30%: seria necessário dobrá-lo ou triplicá-lo, para torná-lo
comparável ao salário das carreiras ditas nobres. Há dois problemas
com a idéia: primeiro, não tem respaldo empírico. Segundo, mesmo que
seja verdadeira, o orçamento de prefeituras e municípios simplesmente
não comportaria um salto assim. Há uma lei que determina que estados e
municípios devem gastar 25% de seu orçamento com educação. O país hoje
gasta 70% dos recursos educacionais com salário de professor. Dobrar o
salário do professor significaria ocupar 35% dos orçamentos com
educação. Triplicar levaria a verba a 52%. Não há estado ou
municipalidade que possa arcar com essa carga. Olhando para a pesquisa
em educação das últimas décadas e para a própria experiência
brasileira, fica difícil acreditar que tenhamos uma educação virtuosa
enquanto os bilhões de reais que gastarmos forem investidos em um
sistema ineficiente, muitas vezes corrupto, e composto por pessoas que
não têm o preparo necessário para exercer suas funções. A investigação
sobre os efeitos dessas novas leis seria uma instigante questão
acadêmica, não fosse o detalhe de que estamos falando de algo que
afeta diretamente os mais de 50 milhões de alunos que povoam nossas
escolas. E os seus 50 milhões de sonhos e projetos de vida que jamais
verão a luz do dia, em parte pelo nosso fetiche por uma idéia que a
realidade já comprovou ser falsa.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.